domingo, 7 de novembro de 2010

Provérbios húngaros citados por António Lobo Antunes em entrevista a RAP.

—"Não há ateus na cova do lobo"

—"Qualquer bocadinho acrescenta, disse o rato, e fez chichi no mar"

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Recebo a noticia sem grande entusiasmo, como se não esperasse outra coisa. Entrei. Na realidade, em mim, o gozo está na luta por atingir o objectivo e não no facto de atingi-lo. Agora há mais três anos de luta. Voltar (como se alguma vez tivesse tido!) a ganhar disciplina, método e vontade de estudar, vai ser o maior de todos os desafios.
No que eu me acabei de meter.

domingo, 5 de setembro de 2010

13 anos depois

Voltarei a faze-lo com a mesma displicência com que o fazia na altura. A displicência com que trato, hoje, a vida em geral. Nada que me tire o sono, nada que me entusiasme por mais de cinco minutos. Estou a confiar demasiado na sorte, se não me safar, também não ficarei desiludido. Nada que me tire o sono, nada que me entusiasme por mais de cinco minutos.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O secretário geral, informou que o escolhido como candidato do partido à presidência da República foi o camarada "chico Lopes" (Jerónimo dixit). Na rádio, ontem, traçavam o perfil do candidato. Electricista, que leu o discurso fúnebre de despedida a Alvaro Cunhal. Quem não se lembra desse Auto laudatório que ficou na memória de todos os Portugueses?
Depois de Portugal levar o choque eléctrico de que tanto precisa, eis o candidato certo para nos voltar a ligar à corrente da prosperidade, sempre num registo de uma certa intimidade única do partido. O nosso chico.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Trilogia puta de Lisboa #3: Sezaltino Venda da Gaita

Com um ar sorridente, a mulher disse para a câmera de televisão enquanto era entrevistada no bairro social onde vivia Sezaltinio, natural de uma aldeia da Beira-Baixa que lhe deu o sobrenome. Eu já estava á espera disto, dês' que deu em panelei...homem-sexual, já tava às péra desta. Eu levar um par de cornos com uma mulher tudo bem, até não me importava, agora com um homem?
Sezaltino morreu depois de ter atropelado duas putas na Duque de Loulé e saído do carro para ver o que tinha acontecido. O seu amante, que trabalhava numa casa de travestis, fazendo de Maria Bethania cantando "olhos nos olhos", na esquina em frente, matou-o logo ali com dois tiros nos cornos de uma arma que guardava nos entrefolhos do cu, por pensar que Sezaltino o enganava com estas duas lambisgoias que nem colhões tinham pr' aguentar com um homem destes e agora se tinham pegado por causa dele.

Trilogia puta de Lisboa #2: Maria Coxa Fina

Vivia no Arco do Carvalhão donde vinha todos os dias num BM gamado pela paixão da sua vida, um lingrinhas tatuado, carregado de escorbuto e psoríase, que, nas suas próprias palavras, lhe punha os dois olhos com sombra natural, quando não trazia pra casa guito suficiente pra duas chinesas. Para manter a magreza natural, comia uma sopa quente nas carrinhas de ajuda na Meia Laranja, antes de ir dar o cu ao manifesto no bar onde por vezes a deixavam fazer o seu numero de cabaret berlinense, quando faltava a kosovar loira que ocupava o lugar.
Morreu, enquanto discutia a ocupação de uma esquina com uma vaca gorda, mamalhuda e porca, atropelada por um cigano numa Ford Transit, que ficou na história da comunidade como o primeiro gay cigano conhecido em Portugal.

Trilogia puta de Lisboa #1: Maria Coxa Grossa

Vinha todos os dias de Fazendas, ao ganho para os bares da Duque de Loulé, trazida, num renault 5 a que saltava a manete da caixa de velocidades quando passava de terceira para quarta, pelo seu apoderado — como ele próprio se intitulava, influenciado pelas lides taurinas das lezírias ribatejanas. Alimentava-se a caralhotas de Almeirim, que comprava nas padarias caseiras da vila, para poder manter a honra do sobrenome e satisfazer os clientes que gostam de putas com a peida grande. Quando as putas são muitas, tiram o ganho umas às outras. Por isso, mão na anca e faca na liga e cá vai disto.
Morreu, enquanto discutia a ocupação de uma esquina com uma magrela, deslambida e escanzelada, atropelada por um cigano numa Ford Transit, que conduzia distraído por ir a apreciar na ponta do dedo indicador a cor e textura dos macacos que tirava do nariz e comia com satisfação gourmet.

Shiiiuuu...o disco também é bom.

Camila Pitanga na capa do disco "João, Voz e Violão".
Melhor que silêncio só João (Caetano, "pra ninguém"), melhor que João, só Pitanga.
Mulheres de salto alto; mulheres com um grãozinho na voz; mulheres morenas. Ás vezes dá-se o caso de elas serem todas uma só no corpo de Camila Pitanga graças à novela das 14h na SIC. óh sorte!!

Nem um político falharia tantas promessas.

- SuperBock SuperRock
- Roxy Music
- Caetano Veloso

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Eu falava no outro dia com um amigo sobre escolhas e citei esse grande filosofo do futebol chamado David Luís. Às tantas na rádio, em entrevista, ele diz "cada escolha é uma renuncia". E se eu já era fã jogador, fiquei também fã do homem com o desenrolar da conversa que ia ouvindo no rádio do carro. O mesmo carro que, qual cordeiro pascal, foi agora vendido em sacrifício por uma escolha que se impunha. Fico sem o conforto do ar condicionado ao sair da praia, sem o sistema de som, sem a direcção assistida, sem a economia do gasoleo, mas em compensação vou, finalmente, deixar de ter, a já há muito baptizada por uma amiga, casa-de-banho do Saddam — onde pontificam as loiças cor-de-rosa-cueca, as torneiras e toalheiros com dourados e azulejos de parede com florões a ornamentar — e uma cozinha com canos novos e um ar mais contemporâneo. E antes que se esgote ainda compro de caminho os bilhetes para o Caetano e Roxy Music e só não compro para os três dias do SuperBock porque não me apetece ir sozinho. Viva o milagre da multiplicação.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Hoje entrou em casa uma brisa nocturna, que trouxe com ela o cheiro do carro do lixo lá em baixo, enquanto eu cá em cima, na varanda, adormecia, como sempre, ao fim de quatro linhas do segundo parágrafo de um qualquer livro que finjo ler antes de adormecer. O cheiro chegou, para me trazer de novo ao mundo dos vivos e fazer o transbordo, a custo e aos pontapés á mobília, até á cama. Não gosto de dormir com barulho nem com luz, fecho tudo, corro as persianas e o resultado é que ao fim de cinco minutos escorro suor por tudo quanto é sitio. Volto a abrir a casa ao ar da noite e tentarei adormece,r na cadeira de praia que está na varanda, ao som dos carros que passam lá em baixo e do ladrar dos cães que guardam o cemitério.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Quando me libertar deste novelo burocrático, proclamarei aos sete ventos e só espero ainda ir a tempo de comemorar com um banho de mar.

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O silêncio, que ardeu na casa no calor da noite, foi cortado apenas pelo barulho da ventoinha que apontei sobre mim mesmo enquanto estava, qual cristo na cruz, de braços e pernas abertas (e isso cristo não estava, nem tanto por pudor mas mais porque, pregos nos pés, segundo reza a lenda, é coisa para não facilitar a abertura a nada) a tentar fazer qualquer coisa que se aproxima-se com dormir. Acordo de, corrijo, levanto-me de manhã, com aquela vontade e madorna que o calor injecta nos corpos e que o facto de estar de férias também não deve ser indiferente, e começo a tratar de mais papelada e telefonemas, e certidões e tudo o que uma alma serena e cristã deseja para apimentar os seus dias idílicos de sol, mar, suor e cerveja.
Quando tudo acabar, se um dia acabar, prometo que vou fugir e ficar com dias inteiros por minha conta, sem pensar que agora tenho de; hoje não posso porque amanhã tenho que; amanhã não dá porque.
E durante esses dias santos nem vale a pena ligarem. Mesmo que seja para dizer que o gato fugiu para cima da arvore.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

No dia em que ficamos mais pobres, aumento do IVA, IRS, taxa de juro do crédito à habitação, só me apetecia espetar na cara destes cabrões todos que nos governam, uma gosma como a que o Ronaldo mandou à câmara em mais uma atitude de puto mimado com mau perder.
Voltar a registar. Para que conste e não esqueça.

sábado, 12 de junho de 2010

Não vim para ver. Não vim para conhecer. Antecipei a vinda apenas para estar. Sem compromissos. Sem esperar nada, sem a inquietação de que qualquer coisa espera por mim. Não há: tenho de me despachar que a seguir tenho de. Só há, houve, o deambular sem destino pelas ruas, ver o que me apeteceu, quando e durante o tempo que me apeteceu. Sentar na praça a ouvir, sem perceber, as conversas dos outros, ler um livro que os outros olhavam sem perceber o que estava escrito. Olhar e guardar na retina, é quanto basta.

domingo, 30 de maio de 2010

O Povo saiu à rua #7: e apanhou sol abençoado no terreiro do paço.

O Povo saiu à rua #7: e viu com cada personagem...

o Povo saiu à rua #6: e...manifestou-se.


O Povo saiu à rua #5: e aproveitou o ar menos poluído da av. onde normalmente só anda de carro.

O Povo saiu à rua #4: e desceu à avenida para ver a manif.

O Povo saiu à rua #3: e viu os Jacarandás em flor em São Pedro de Alcantara.

O Povo saiu à rua #2

O Povo saiu à rua #1: e gastou dinheiro a crédito em antros de moda importada da China.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

domingo, 9 de maio de 2010

Sou maníaco-obsessivo ou só não gosto de Pipocas?

Às tantas a personagem de Ben Stiller, Greenberg, que dá nome ao filme, diz para o amigo com quem jantava num restaurante, sobre um pessoal barulhento que estava na mesa ao lado: estejam à vontade, sintam-se como estivessem na sala de estar da vossa casa. Foi o que me apeteceu dizer às pessoas que estavam à minha volta a encher a mula com baldes mastondônticos de pipocas.
Não vale a pena, a ultima vez que tinha ido ao corte inglês ver um filme mudei de cadeira a meio porque o cheiro a perfume da velha, com ar de Avenidas Novas, que estava ao meu lado começou a desconcentrar-me e eu já não pensava no filme, só no cheiro enjoativo e nauseabundo que estava a ficar na minha roupa. È verdade que a minha pontaria para acertar em lugares de cinema está ao nível de José Socrates para as previsões económicas, nunca acertamos mas ficamos contentes porque a culpa nunca é nossa, afinal os outros é que estão a comer pipocas. Mas ontem tive mesmo que me aguentar ali se não queria ficar a ver o resto do filme a dois palmos do ecrã e no fim ganhar três dioptrias em cada olho e um lugar de roupeiro numa equipa de futebol de meio da tabela.
Arrisquei a ir, ao sábado, aquele lugar de culto urbano para classe média falida e boçal, apenas porque o filme não passa nos cinemas sem pipocas de Lisboa. E o filme, afinal, nem era grande coisa. Ao contrário da personagem, um maníaco-obsessivo com quem encontrei algumas afinidades. Como na história das pipocas. È que depois não são só as pipocas em si, é todo um ritual que torna aquilo insuportavelmente ruidoso; é a mão dentro do balde como que a baralhar as pedras do loto em procura só deus sabe do quê; são as trincadelas de degustação para ouvir o estalar crocante entre os dentes, é o mastigar dolente como se aquela merda fosse uma coisa rara de se achar e provocasse prazeres orgásticos, isto sem falar na chupadela no copo de coca-cola até ao final só para ter a certeza que já não há liquido dentro daquele pequenino copo de litro de refrigerante. Completamente distraído e com a sala às escuras, nem reparei que acabei por me sentar no meio de dois casais de pipoqueiros e acabei por levar com pipocas de forma histriónica e em stereo durante o filme todo, e quase que acabei a pedir desculpa por estar pr' ali em silêncio para ver um filme que por acaso, mas só por acaso, estava ali a passar numa tela gigante — não sei já se repararam — enquanto a amena cavaqueira e a comezaina decorriam no escurinho do — olha! não é que isto é um — cinema.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

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Sem coração bastante forte para conceber um amor forte, e contente com esta incapacidade que o libertava, do amor só experimentou o mel — esse mel que o amor reserva aos que o recolhem, à maneira das abelhas, com ligeireza, mobilidade e cantando.
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Eça de Queirós, A cidade e as Serras.

sábado, 3 de abril de 2010

Eu não vi nada, confesso que não vi. E no entanto sent(e)i-me no topo do mundo. Deve ser dos lugares mais altos do estádio da Luz. Tão alto que nem a própria águia vou tão alto, tão alto que fiquei com a sensação que se saltasse mais alto, a festejar um golo, talvez batesse com os cornos no tecto e fizesse mais barulho que o caralho dos petardos que algumas bestas insistem em levar pró estádio. Valeu que os golos do Benfica foram na baliza do topo onde ficamos.
Pouco mais vi que uma careca luzidia ao lado de uma trunfa encaracolada a aguentar os ataques dos ingleses e do seu avançado espanhol; um preto em campo, que de tão preto, cá de cima parecia apenas uma sombra de si mesmo e daquilo que é capaz; uma cabeça amarela cheia de velocidade a varrer corredores para cima e para baixo; um enfezado orelhudo a fazer desenhos no relvado, mesmo que as canetas bambas que o sustentam não tenham tinta mas assinem com arte; um gigante, meio desajeitado e trôpego, em dificuldades de sincronização com o seu próprio corpo, a tentar acertar na baliza adversária enquanto sessenta mil almas, ao longo de quase uma hora, em desespero, evocaram a sua mãe, insinuando que a senhora vivia de actividades em que tinha de dar o corpo ao manifesto de forma mais ou menos bem remunerada. Redimiu-se, e por duas vezes concretizou o que já por cinco vezes tinha falhado esta época, não evitando contudo, gente de costas voltadas, olhos tapados e unhas ruídas antes do frente a frente com o pequeno rectângulo de 7 por dois metros e tal.
Não vi nada, e no entanto vi tudo. Dali via-se tudo. Gosto de ir ao estádio porque vejo tudo, mesmo sem perceber nada. Olho para dentro do campo e gosto de ver as fintas, os dribles, os centros teleguiados para o centro da área, as mudanças de velocidade e arranques dos jogadores, gosto de remates potentes fora da área, gosto de defesas em voo, mas não percebo nada de táctica, olhar para dentro do campo e dizer se estão a jogar em 4x4x2, 3x5x2, 3x4x3, 70x7, todos ao molho, em losango, circulo ou triângulo equilátero, escaleno ou isósceles, para mim é impossível, sei, acho que sei, olhar e dizer estão a jogar bem ou, não jogaram um caralho. Isso é senso comum, é intuição de adepto. Mas ir ao estádio não é pra ver melhor, quem quer ver melhor e repetidas vezes, em pormenor e confortavelmente, vê em casa. O futebol começa muito antes do apito do arbitro, começa na conversa de café, e eu encaralhado sem saber o que dizer mas a disfarçar o melhor que posso, começa na roullotte do courato e da imperial nas imediações do estádio e prolonga-se para dentro, são as filas para entrar, é a chuva que se apanha por necessidade devocional, é a comunhão geral em torno de um objectivo comum, é a exorcização de uma semana má em cima do filha da puta do arbitro e do grito extasiado do golo, é condescender a gestos de duvidosa masculinidade, impensáveis a desconhecidos fora daquela catedral pagã, são os cânticos em louvor, é a emoção do momento único e irrepetivel a cada tentativa ou concretização de golo. Enfim, para quem, como eu, é adepto da observação sociológica do ser humano como hobbie, um jogo de futebol é um banquete dos deuses. Único e divinal se for do Benfica. Venham eles.

sábado, 20 de março de 2010

Vou-me embora, não sei para aonde ou fazer o quê. Talvez dormir, um sono longo e repousante, e quando acordar, se me apetecer, talvez voltar a socializar.
É isso, vou dormir.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Eu gosto de samba mas não gosto de carnaval. Corrijo; gosto de samba mas não gosto do carnaval português, acho ridículo e sem graça. No Brasil não deixaria o samba morrer por cá, se fosse gaja, seria a Madame da canção. As lontras em fato de banho com pele de galinha arrepiada sem pé para sambar. Peseudo-passistas. Nada pior que uma imitação quando não se pode ter o verdadeiro. Sonho com o dia em que hei-de ir ao carnaval da Bahia. Você já foi à Bahia, nega? não? então vá! . Eu vou atrás. Se bem que hoje, depois de ver uma mulata, com as mamas que mais me apeteceram morder nos últimos tempos (e nos últimos tempos, o que me tem apetecido morder mamas!) a ser entrevistada sobre qual dos galãs da novela devia ficar com a protagonista, tive logo vontade de trocar o bilhete de avião e seguir para o Rio e procurar nas praias do calçadão aquela menina preta de biquini amarelo no meio da onda. Na dúvida fico por cá a servir de assistente social e pôr o meu pai a cagar na cadeira-penico enquanto vou teclando umas merdas sobre carnaval e pretas de carnes rijas e bundas largas.
Vai-lhe a minha mãe limpando o cu, e meto eu outro parágrafo antes de rebentar (mais) um bocado as costas no transbordo entre o penico-com-rodas e o sofá, onde está agora de olhos fechados debaixo de um cobertor e com o aquecedor a óleo quase no meio das pernas. Para acabar os jogos sem fronteiras do dia, ainda estava eu a meio desta frase e já me esperava a tarefa hercúlea de, neste espaço acanhado de duas assoalhadas o voltar a pôr na cama do quarto atulhado de cobertores para não morrer de frio. Entretanto, enquanto me preparo para desligar esta merda, já se canta em frente, na tasca do chico, a tvi já vai na terceira novela sem tirar fora e a passarada chilreia em resposta ao ressonar da minha mãe. Morta de cansaço no sofá. E hoje ainda é sábado.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A nada imploram tuas mãos já coisas,
Nem convencem teus lábios já parados,
No abafo subterrâneo
Da húmida imposta terra.
Só talvez o sorriso com que amavas
Te embalsama remota, e nas memórias
Te ergue qual eras, hoje
Cortiço apodrecido.
E o nome inútil que teu corpo morto
Usou, vivo, na terra, como uma alma,
Não lembra. A ode grava,
Anónimo, um sorriso.
Ricardo Reis, Odes.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A perversidade da vida é que começamos a morrer assim que saímos daquele pequeno universo liquido em que fomos gerados. Felizmente, se a vida correr dentro de alguma normalidade, seja lá o que isso for, e com alguma sorte, é possível chegar á idade adulta (que idade é essa? conheço velhos de 10 anos e adolescentes na idade da prateleira quase com 40 ou mais) com uma sensação saborosa de uma ingénua infinitude, própria da idade. Lembro-me de também pensar que sim, que temos todo o tempo do mundo e que isto nunca vai acabar. Ou se calhar não me lembro nada, penso apenas que pensava, porque na realidade, e por isso a imortalidade, nada disso me passava pela cabeça. Tinha mais em que pensar: na carcaça besuntada com margarina Flora e carregada de açúcar amarelo em casa da avó, no berlinde abafado, nas escondidas no beco, nas guerras de canudos, na bola que não sabia jogar; em como fugir para ir pescar tainha na doca, e em como me aguentar sem corar de vergonha, com outra chavalada mais afadistada lá do bairro, na prova de fogo do bate-pé. Do que me lembro, e disso tenho certeza, foi do momento em que perdi essa inocência e pensei, é pá, isto talvez não dure sempre. Esse momento, comum a todas as pessoas em algum momento da vida, é o momento em que pela primeira vez damos importância ao desaparecimento físico de alguém, e em que de repente o vazio, em que de repente vislumbramos, mesmo que muito ao longe e de forma muito ténue, o nosso próprio fim. Mesmo que não o vejamos, ou simplesmente o recusemos a ver, sabemos que ele está lá. Olho para o meu pai e é nisto que penso. Qual o caminho que estará reservado para mim. Que merda de caminho lhe reservaram para ele. Vejo a multidão de pessoas à volta dele e faz-me impressão aquela espécie de velório em vida. Sem dialogo, apenas uma silenciosa troca de olhares, entremeada com conversa de ocasião. Comeu, dormiu bem, tem dores, e por vezes apenas um aceno de cabeça e um olhar mortiço como resposta.
Está saturado, eu também estaria. Dia e noite, ora na cama, ora na poltrona do hospital, dentro daquela enfermaria onde nenhum melhor que ele, tubos e mais tubos, dores e mais dores, familiares a chorar para cima dos seus doentes, é este o cenário que tem pela frente, tipo futuro premonitório do que lhe espera, enquanto ocupado com os pensamentos que lhe consomem a vida. Com a sua autonomia completamente perdida, sente que perdeu também a sua dignidade, imagino como se deve sentir envergonhado e revoltado, por lhe mudar a fralda, po-lo a urinar, deita-lo na cama e dar-lhe comer à boca quem já dele, naquela velha infância, dependeu para fazer isso. A perniciosa inversão de papeis. Por muito que se relativize o momento, qualquer pai dispensaria a necessidade de o seu o filho o pôr a mijar ou de lhe dar a sopa à boca.
Agora que se avista o cais de partida, não restará muito mais que acompanha-lo, serenamente, até que decida embarcar na viagem que, acredito, o libertará desta vida que já não quer e da qual há muito tempo, julgo que em consciência, desistiu.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Sugestionado.

Cubro a boca e o nariz para evitar o frio cortante da noite de Massamá, enquanto vou de um pavilhão ao outro da empresa, e o cheiro do cachecol traçado ao pescoço é a hospital.
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Foi atravessando os rigores do inverno, que o tempo chegou à primavera.
Zálkind Piatigorsky
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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Avatar ou o acto falhado

Arrasta-se trôpego pela casa fora, apoiado pelas paredes que o conduzem à rua, abre a porta e desce a escada de rojo, a mesma escada que há semanas não sobe nem desce sem ajuda de alguém. Caminha descalço - ele que gela de frio e há anos que nem no verão anda sem meias - em direcção ao largo, como se do caminho para o calvário se tratasse. Mas é um caminho para o calvário especial; ele não carrega a cruz, ele sente-se a própria cruz que outros carregam e tal como Jesus, quer morrer para os salvar. Nos escassos longos metros, talvez a vida lhe tenha passado em revista. Diz um, cínico, bom dia ao vizinho que passa - comuna! - e feito o balanço, avança. Deixa o corpo cansado descair sobre o banco. Não é fácil imaginar onde raio alguém esconde uma faca afiada num roupão de quarto. Uma faca, assegura a mulher, uma espécie de furacão em pessoa que pareceu perder fôlego com mais este abalo de terra, mas que permanece de pé (até quando, até quando), lá no alto, imponente e estóica, a pairar sobre as coisas, que serve de guia, quando é preciso apontar a direcção para não perder o norte. Uma faca, dizia, afiada, pontiaguda, que ela assegura nunca ter visto - de onde apareceu aquilo, meu deus! - talvez uma daquelas que mostrou há meses, trazida dos tempos da guerra colonial passada na Guiné e que é mais um daqueles assuntos tabu de que quase nunca fala mas que lhe tolda com frequência o espírito.
A vantagem e a desvantagem de viver num bairro onde toda a gente se conhece são uma e a mesma coisa: há sempre alguém conhecido que passa e vai contar. E foi esse leva e trás que levou a florista, uma simpática matrona de riso fácil e ajuda pronta, a segurar-lhe no braço bruscamente e com dois berros em tom militar, travar aquilo que parecia inevitável e que deixou a pobre senhora - só de pensar !- dois dias sem dormir.
Aos porquês, fáceis de explicar, para quem, hoje, é apenas uma sombra do que já foi, acrescenta-se outro, de razão bem mais prática, sussurrado, em voz tremula, ao ouvido da mulher, depois de evitado o pior - não queria sujar a casa com sangue. Uma questão de logística doméstica, portanto, aparentemente menor mas que na verdade poderia tornar a pequena casa de duas assoalhas num pouco aprazível lago vermelho, com a jugular no meio a esguichar por todo o lado enquanto ainda restassem forças no coração cansado. Ademais, mesmo na hora da morte, dificilmente a mulher (que contaria mais tarde a uma vizinha em tom emocionado: fez uma tentativa de homicídio; pronto:tentou matar-se!) lhe perdoaria a desistência da vida e a carpete manchada. No fundo, no fundo mesmo de forma involuntária, acaba por existir um traço de verdade quase metafísico na afirmação da exausta mulher. É que no âmago mais profundo do seu ser, aquele pai amantíssimo, não queria matar o homem que foi mas aquele que é. O seu avatar no qual, compreensivelmente, não se revê, e que tolhido de força e saúde, o faz sentir ferido na sua dignidade humana.