quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Sugestionado.

Cubro a boca e o nariz para evitar o frio cortante da noite de Massamá, enquanto vou de um pavilhão ao outro da empresa, e o cheiro do cachecol traçado ao pescoço é a hospital.
.
.
.
.
.
Foi atravessando os rigores do inverno, que o tempo chegou à primavera.
Zálkind Piatigorsky
.
.
.
.
.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Avatar ou o acto falhado

Arrasta-se trôpego pela casa fora, apoiado pelas paredes que o conduzem à rua, abre a porta e desce a escada de rojo, a mesma escada que há semanas não sobe nem desce sem ajuda de alguém. Caminha descalço - ele que gela de frio e há anos que nem no verão anda sem meias - em direcção ao largo, como se do caminho para o calvário se tratasse. Mas é um caminho para o calvário especial; ele não carrega a cruz, ele sente-se a própria cruz que outros carregam e tal como Jesus, quer morrer para os salvar. Nos escassos longos metros, talvez a vida lhe tenha passado em revista. Diz um, cínico, bom dia ao vizinho que passa - comuna! - e feito o balanço, avança. Deixa o corpo cansado descair sobre o banco. Não é fácil imaginar onde raio alguém esconde uma faca afiada num roupão de quarto. Uma faca, assegura a mulher, uma espécie de furacão em pessoa que pareceu perder fôlego com mais este abalo de terra, mas que permanece de pé (até quando, até quando), lá no alto, imponente e estóica, a pairar sobre as coisas, que serve de guia, quando é preciso apontar a direcção para não perder o norte. Uma faca, dizia, afiada, pontiaguda, que ela assegura nunca ter visto - de onde apareceu aquilo, meu deus! - talvez uma daquelas que mostrou há meses, trazida dos tempos da guerra colonial passada na Guiné e que é mais um daqueles assuntos tabu de que quase nunca fala mas que lhe tolda com frequência o espírito.
A vantagem e a desvantagem de viver num bairro onde toda a gente se conhece são uma e a mesma coisa: há sempre alguém conhecido que passa e vai contar. E foi esse leva e trás que levou a florista, uma simpática matrona de riso fácil e ajuda pronta, a segurar-lhe no braço bruscamente e com dois berros em tom militar, travar aquilo que parecia inevitável e que deixou a pobre senhora - só de pensar !- dois dias sem dormir.
Aos porquês, fáceis de explicar, para quem, hoje, é apenas uma sombra do que já foi, acrescenta-se outro, de razão bem mais prática, sussurrado, em voz tremula, ao ouvido da mulher, depois de evitado o pior - não queria sujar a casa com sangue. Uma questão de logística doméstica, portanto, aparentemente menor mas que na verdade poderia tornar a pequena casa de duas assoalhas num pouco aprazível lago vermelho, com a jugular no meio a esguichar por todo o lado enquanto ainda restassem forças no coração cansado. Ademais, mesmo na hora da morte, dificilmente a mulher (que contaria mais tarde a uma vizinha em tom emocionado: fez uma tentativa de homicídio; pronto:tentou matar-se!) lhe perdoaria a desistência da vida e a carpete manchada. No fundo, no fundo mesmo de forma involuntária, acaba por existir um traço de verdade quase metafísico na afirmação da exausta mulher. É que no âmago mais profundo do seu ser, aquele pai amantíssimo, não queria matar o homem que foi mas aquele que é. O seu avatar no qual, compreensivelmente, não se revê, e que tolhido de força e saúde, o faz sentir ferido na sua dignidade humana.