sábado, 3 de abril de 2010

Eu não vi nada, confesso que não vi. E no entanto sent(e)i-me no topo do mundo. Deve ser dos lugares mais altos do estádio da Luz. Tão alto que nem a própria águia vou tão alto, tão alto que fiquei com a sensação que se saltasse mais alto, a festejar um golo, talvez batesse com os cornos no tecto e fizesse mais barulho que o caralho dos petardos que algumas bestas insistem em levar pró estádio. Valeu que os golos do Benfica foram na baliza do topo onde ficamos.
Pouco mais vi que uma careca luzidia ao lado de uma trunfa encaracolada a aguentar os ataques dos ingleses e do seu avançado espanhol; um preto em campo, que de tão preto, cá de cima parecia apenas uma sombra de si mesmo e daquilo que é capaz; uma cabeça amarela cheia de velocidade a varrer corredores para cima e para baixo; um enfezado orelhudo a fazer desenhos no relvado, mesmo que as canetas bambas que o sustentam não tenham tinta mas assinem com arte; um gigante, meio desajeitado e trôpego, em dificuldades de sincronização com o seu próprio corpo, a tentar acertar na baliza adversária enquanto sessenta mil almas, ao longo de quase uma hora, em desespero, evocaram a sua mãe, insinuando que a senhora vivia de actividades em que tinha de dar o corpo ao manifesto de forma mais ou menos bem remunerada. Redimiu-se, e por duas vezes concretizou o que já por cinco vezes tinha falhado esta época, não evitando contudo, gente de costas voltadas, olhos tapados e unhas ruídas antes do frente a frente com o pequeno rectângulo de 7 por dois metros e tal.
Não vi nada, e no entanto vi tudo. Dali via-se tudo. Gosto de ir ao estádio porque vejo tudo, mesmo sem perceber nada. Olho para dentro do campo e gosto de ver as fintas, os dribles, os centros teleguiados para o centro da área, as mudanças de velocidade e arranques dos jogadores, gosto de remates potentes fora da área, gosto de defesas em voo, mas não percebo nada de táctica, olhar para dentro do campo e dizer se estão a jogar em 4x4x2, 3x5x2, 3x4x3, 70x7, todos ao molho, em losango, circulo ou triângulo equilátero, escaleno ou isósceles, para mim é impossível, sei, acho que sei, olhar e dizer estão a jogar bem ou, não jogaram um caralho. Isso é senso comum, é intuição de adepto. Mas ir ao estádio não é pra ver melhor, quem quer ver melhor e repetidas vezes, em pormenor e confortavelmente, vê em casa. O futebol começa muito antes do apito do arbitro, começa na conversa de café, e eu encaralhado sem saber o que dizer mas a disfarçar o melhor que posso, começa na roullotte do courato e da imperial nas imediações do estádio e prolonga-se para dentro, são as filas para entrar, é a chuva que se apanha por necessidade devocional, é a comunhão geral em torno de um objectivo comum, é a exorcização de uma semana má em cima do filha da puta do arbitro e do grito extasiado do golo, é condescender a gestos de duvidosa masculinidade, impensáveis a desconhecidos fora daquela catedral pagã, são os cânticos em louvor, é a emoção do momento único e irrepetivel a cada tentativa ou concretização de golo. Enfim, para quem, como eu, é adepto da observação sociológica do ser humano como hobbie, um jogo de futebol é um banquete dos deuses. Único e divinal se for do Benfica. Venham eles.