domingo, 29 de março de 2009

Vou prá Expo fazer uma corrida dominical. Não gosto do dia para o fazer, muita gente. Como era cedo - não tão cedo quanto julgei, o tempo, num salto de lebre, na calada da noite adiantou-se uma hora - arrisco. Quando eu vinha pra cá, ainda estavam os domingueiros a ir para lá. Safo-me a tempo. Domingo de manhã é daqueles dias que se não madrugarmos, arriscamos-nos a trocar, involuntariamente, um jogging por uma gincana no meio da turba de ciclistas trajados a rigor, que retemperam forças dois kms à frente; velhos que tentam contrariar as artroses; crianças em histeria por mais uma queda de triciclo e oxigénio a mais nas faces; donas de casa redondas que pensam que a coisa vai com uma passeata ao domingo, enquanto discutem entre si se logo à tarde pasteis de Belém ou tortas de Azeitão; carros de bebé, puxados por pais babados em languidas caminhadas, antes que os pirralhos despertem em birras e choros e merda e o raio que parta as criancinhas e os seus caprichos. Enfim, um domingo normal portanto, para quem é "casado, fútil, quotidiano e tributável" (Pessoa dixit).
Regresso a casa. Naturalmente passo na ex-zona semi-industrial de Lisboa. Sempre me fascinou o ar decadente deste lado da cidade. Conhecia-o bem quando, em miúdo, acompanhava o meu pai na distribuição de cartas por Marvila, Beato e Poço do Bispo. Acho que ficou na arquitectura do local, nas gentes, e no ar abandonado das quintas, edifícios e fábricas algo da revolução industrial do inicio do século XX. Atmosfera que o local ainda vai guardando a sete chaves. Passo junto à Fábrica de Braço Prata, onde antes se congeminava a guerra, hoje as artes. Nas traseiras três murais indicam que as artes andam inquietas por aqui. Um com fronha de bolchevique pintado em estilo pop warholiano, sobre as palavras fake e behave. Logo ao lado encrostado na parede, cheio de expressão, o rosto de uma mulher. Aquele rosto, carrega em si mesmo, toda uma história. Quase que se sofre, tanto quanto aquilo tem um ar sofrido, com a pseudo-vida daquela mulher, marcada pelo escopro que mutilou aquela parede. E no entanto, da tristeza dela parece que emana uma paz no olhar de que ainda há esperança. Diferente do olhar triste e sem fundo, apesar das lágrimas, do companheiro composto em tiras de papel de vários tons, colado sobreposto para lhe darem forma e expressão de quem carrega em si todos os males do mundo.
Continuo, e mais á frente lá está no seu passeio rotinado, um velho preto, meio manco, apoiado na sua bengala. Passeio a baixo, passeio a cima. Há anos que o vejo, sempre sob o sol da manhã, naquele, passeio-abaixo-passeio-acima. 
Vejo-o sempre com fatiota de domingo, mesmo que dia de semana. Jaquetão traçado, calça vincada, entrevejo-lhe, apesar da velhice, alguma altivez naquela vaidade de pobre. Imagino-lhe os pensamentos e o porquê daquele passeio, anos naquilo - passeio-abaixo-passeio-acima. Talvez o sol lhe faça matar saudades de África. Mas falta-lhe o cheiro. O cheiro do calor de África é diferente (Aterrei em África à noite e mesmo de noite, o cheiro marca). Talvez sonhe, naquele pedaço de passeio, com a liberdade daquela terra sem fim, a perder de vista. Imagino que ele se imagina a si, quando suavemente manca naquela calçada de pedra, em passos pequenos e lentos, a vaguear sob o poeirento chão de cor ocre num qualquer muceque angolano. Ninguém devia ser privado de morrer na sua terra natal quando a ela quer voltar. Mas isto sou só eu a delirar.