sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A perversidade da vida é que começamos a morrer assim que saímos daquele pequeno universo liquido em que fomos gerados. Felizmente, se a vida correr dentro de alguma normalidade, seja lá o que isso for, e com alguma sorte, é possível chegar á idade adulta (que idade é essa? conheço velhos de 10 anos e adolescentes na idade da prateleira quase com 40 ou mais) com uma sensação saborosa de uma ingénua infinitude, própria da idade. Lembro-me de também pensar que sim, que temos todo o tempo do mundo e que isto nunca vai acabar. Ou se calhar não me lembro nada, penso apenas que pensava, porque na realidade, e por isso a imortalidade, nada disso me passava pela cabeça. Tinha mais em que pensar: na carcaça besuntada com margarina Flora e carregada de açúcar amarelo em casa da avó, no berlinde abafado, nas escondidas no beco, nas guerras de canudos, na bola que não sabia jogar; em como fugir para ir pescar tainha na doca, e em como me aguentar sem corar de vergonha, com outra chavalada mais afadistada lá do bairro, na prova de fogo do bate-pé. Do que me lembro, e disso tenho certeza, foi do momento em que perdi essa inocência e pensei, é pá, isto talvez não dure sempre. Esse momento, comum a todas as pessoas em algum momento da vida, é o momento em que pela primeira vez damos importância ao desaparecimento físico de alguém, e em que de repente o vazio, em que de repente vislumbramos, mesmo que muito ao longe e de forma muito ténue, o nosso próprio fim. Mesmo que não o vejamos, ou simplesmente o recusemos a ver, sabemos que ele está lá. Olho para o meu pai e é nisto que penso. Qual o caminho que estará reservado para mim. Que merda de caminho lhe reservaram para ele. Vejo a multidão de pessoas à volta dele e faz-me impressão aquela espécie de velório em vida. Sem dialogo, apenas uma silenciosa troca de olhares, entremeada com conversa de ocasião. Comeu, dormiu bem, tem dores, e por vezes apenas um aceno de cabeça e um olhar mortiço como resposta.
Está saturado, eu também estaria. Dia e noite, ora na cama, ora na poltrona do hospital, dentro daquela enfermaria onde nenhum melhor que ele, tubos e mais tubos, dores e mais dores, familiares a chorar para cima dos seus doentes, é este o cenário que tem pela frente, tipo futuro premonitório do que lhe espera, enquanto ocupado com os pensamentos que lhe consomem a vida. Com a sua autonomia completamente perdida, sente que perdeu também a sua dignidade, imagino como se deve sentir envergonhado e revoltado, por lhe mudar a fralda, po-lo a urinar, deita-lo na cama e dar-lhe comer à boca quem já dele, naquela velha infância, dependeu para fazer isso. A perniciosa inversão de papeis. Por muito que se relativize o momento, qualquer pai dispensaria a necessidade de o seu o filho o pôr a mijar ou de lhe dar a sopa à boca.
Agora que se avista o cais de partida, não restará muito mais que acompanha-lo, serenamente, até que decida embarcar na viagem que, acredito, o libertará desta vida que já não quer e da qual há muito tempo, julgo que em consciência, desistiu.